quinta-feira, 8 de março de 2012

A “INDÚSTRIA” DO ROUBO DE CARROS NA REGIÃO METROPOLITANA DE GOIÂNIA.


A dura e triste realidade de um País, que tem permitido que a corrupção e a omissão se tornem fomentadoras da criminalidade e da violência, tem sido decisiva para a inviabilização da segurança pública. A “indústria” de roubos e furtos de veículos automores na região metropolitana de Goiânia espelha essa triste realidade.

Ocorre que esse tipo de crime - como os demais - obedece à lógica da economia de mercado, definida pela oferta e procura, maior ou menor risco e, principalmente, pela lucratividade.

Nenhuma atividade é levada a efeito se não houver a viabilidade do lucro. Com certeza, o lucro fácil é a base para o fomento de qualquer atividade econômica e a atividade criminosa não foge a essa regra.

O roubo/furto de veículos também obedece aos princípios econômicos, pois esses crimes ocorrem na exata dimensão da necessidade do mercado. O quantitativo diário de veículos subtraídos da população goiana depende do “mercado consumidor”, que dita regras para o “negócio”, de forma que não é roubado nenhum veículo a mais ou a menos que a capacidade de absorção desse “mercado”.

Os motivos ou demandas para os furtos e roubos de veículos são diversos: cometimento de outros crimes, moeda de troca por drogas, desmanche para comercialização irregular de peças, clonagem e outras falsificações.

Contudo, uma nova modalidade de “demanda” tem aquecido esse “mercado” criminoso e estabelecido verdadeira “indústria” do carro roubado/furtado em Goiás, comumente denominada “máfia dos salvados".

“Salvados” são os veículos sinistrados (acidentados) com laudo de perda total, que são vendidos irregularmente como se fossem carros recuperáveis. Desta forma, descumpre-se o disposto no art. 126 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), segundo o qual “o proprietário de veículo irrecuperável, ou definitivamente desmontado, deverá requerer a baixa do registro, no prazo e forma estabelecidos pelo CONTRAN”.

Os veículos segurados, quando sinistrados com laudo de perda total são indenizados e transferidos para a propriedade das seguradoras, às quais compete a obrigação de proceder à baixa do registro do veículo, nos termos do parágrafo único do citado art. 126 do CTB. Se estes veículos são revendidos como recuperáveis, ou seja, sem o cumprimento das exigências estabelecidas pelo Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN) para esse tipo transação, sem regulamentação e fiscalização, o “objeto do desejo” do criminoso (a documentação e chassis do veículo sinistrado) é mantido válido, tendo inicio o grande “negócio criminoso”.

O comércio de veículos sinistrados deve obedecer aos ditames da Resolução nº 011/98 do CONTRAN (com alterações inseridas pelas Resoluções nº 113/00 e nº 179/05) e apenas os veículos recuperáveis, ou seja, com danos máximos de média monta, podem voltar a circular. Veículos irrecuperáveis, enquadrados com “perda total”, só podem ser vendidos como sucatas, conforme a citada resolução, quando previamente recolhidos pelo órgão executivo de trânsito os documentos e placas do veículo, inutilizadas as partes do chassi que contêm o registro VIN (numero de identificação do veículo – tradução da sigla em inglês) e após a devida baixa do registro do veículo sinistrado.

As próprias seguradoras definem o enquadramento dos sinistrados (pequena, média ou grande monta) que vão a leilão, obedecendo aos seus interesses econômicos. Isso possibilita que sucatas sejam arrematadas como veículos recuperáveis. As seguradoras fazem bons negócios e “lavam as mãos”, ainda que fique evidenciado que o negócio, na verdade, se dá em relação à documentação do veículo (sucata) que será usada para a realização de “implantes” e da nota fiscal genérica que irá possibilitar a comercialização de um grande número de peças de veículos roubados/furtados.

Os “salvados” são reconstruídos a partir de peças de outros veículos ou simplesmente recebem “implantes”, que na gíria do criminoso é conhecido como “trepar outro veículo”, de mesmas características, sobre o chassis e documentação do veículo “sinistrado”. Para tanto, é necessário um ou mais veículos, com as mesmas características, que são roubados ou furtados sob encomenda.

Isso explica porque não há queixas dos “clientes dos leilões” contra os enquadramentos feitos pelas seguradoras, nem contra os valores da avaliação, fazendo com que sucatas sejam arrematadas por valores totalmente descabidos, chegando a 50% do valor do veículo novo, quando na verdade não valem mais que 5% desse valor.

A maior parte dos Estados brasileiros já adotou providências para normatizar e fiscalizar esse tipo de comércio e, ao inviabilizarem o “negócio criminoso”, fizeram com que esses leilões se concentrassem em regiões onde ainda vigora a ilegalidade.

Em Goiânia, semanalmente são leiloados centenas de veículos, de procedência de diversos Estados da Federação, fazendo de nossa capital o “paraíso dos salvados” e aumentando febrilmente a quantidade de roubos e furtos que, por exigência do negócio, passou a ocorrer por encomenda.

A jovem Polyanna Arruda foi uma das vítimas desse sistema criminoso. Conforme concluiu nossa Polícia Civil, Polyanna foi morta em 2009 em uma tentativa de roubo, especificamente por estar dirigindo um automóvel Prisma preto, com as mesmas características de um veículo sinistrado (perda total), arrematado por criminosos em um leilão para o fabrico de mais um “salvado”.

As “encomendas” se comprovam no dia a dia da criminalidade. No dia 07 de fevereiro do corrente, dois roubos de veículos, quase simultâneos, chamaram a atenção: duas caminhonetes Hilux, ambas de cor prata e ano 2009 foram tomadas de assalto. Nesses casos, houve a intervenção rápida e bem coordenada da Polícia Militar e da Polícia Rodoviária Federal, o que ocasionou a liberação imediata dos reféns e a recuperação dos dois veículos. Mas poderia ter ocorrido mais uma fatalidade...

A imprensa nacional já denunciou a “máfia dos salvados” e expôs as vísceras dessa prática criminosa abominável. Em 2003 foi instalada a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para apurar irregularidades com veículos salvados cometidas por empresas de seguros, revendedores e recuperadoras de veículos.

As investigações sobre a máfia de carros salvados no Brasil fizeram a CPMI concluir pelas seguintes propostas:
1) Responsabilização do proprietário do veículo irrecuperável ou desmontado pelo pedido de baixa do registro com prazo de 30 dias. Hoje, essa obrigação é da seguradora e de quem está adquirindo o carro.
2) Se o veículo estiver pendente de licenciamento por cinco anos, a baixa poderá ser pedida pelo órgão executivo de trânsito. O órgão de trânsito deverá emitir certidão de baixa em caráter irrevogável e definitivo.
3) Veículo acidentado será obrigatoriamente avaliado pelo agente do órgão fiscalizador, que deverá atestar, no momento da ocorrência do acidente, se ele é recuperável ou não.
4) Constatada a irrecuperabilidade do veículo, a baixa do registro deverá ser feita automaticamente no sistema nacional de controle de veículos automotores.
5) Que a lei torne obrigatória a marcação das peças e a emissão de nota fiscal de entrada.
6) Criação de pátio de desmanche com a participação da iniciativa privada como forma de controlar e fiscalizar o comércio de peças usadas.
7) Sugere também ao Conselho Nacional de Trânsito e ao Departamento Nacional de Trânsito que promovam a normatização, com urgência, da comercialização das peças oriundas de veículos acidentados e de desmanches.
8) Encaminhar, ao Ministério Público dos Estados, pedido de providências quanto ao comportamento dos órgãos de trânsito ao longo dos anos, e às receitas federal e estaduais, realização de fiscalização das lojas de "salvados".
9) Que o Inmetro entenda a necessidade de atuação mais firme na fiscalização dos organismos de inspeção veicular para coibir a emissão de certificados falsos;
10) Regulamentação das oficinas de desmanche, apontadas como a principal fonte do comércio ilegal de peças de veículos sinistrados.
11) Marcação das peças dos veículos novos ainda nas montadoras. Marcação do número do chassi do veículo novo em diversas partes e a viabilização da marcação através de raio laser e em alto relevo.
12) Transferência da fiscalização das empresas de Inspeção Veicular do Inmetro para órgão policial de trânsito.
13) DETRAN editar Portaria determinando a anotação, no registro dos veículos recuperados, das palavras “recuperado e salvado”.
14) Fiscalização quanto ao cumprimento da obrigatoriedade das seguradoras comunicarem a ocorrência de perda total (art. 243 do CTB).
A CPMI elaborou proposta de lei que, após cinco anos de tramitação no Congresso Nacional, simplesmente recebeu o veto integral por parte da Presidência da República.
Na Europa, a maioria dos países adequou suas legislações relativamente aos “salvados” e tiveram uma drástica redução no número de roubos de carros. No Brasil, grande parte dos Estados adotou medidas que inviabilizaram esse “negócio” fraudulento.
Por mais esforços preventivos e repressivos que façam as Polícias Estaduais e Federais, não têm sido - e não serão - capazes de minorar esse fenômeno criminoso. A prisão das quadrilhas não tem efeito prático, pois os criminosos ficam pouco tempo presos ou são rapidamente substituídos por outros “trabalhadores”.

Quantas vidas teremos que perder para que sejam adotadas medidas simples para inviabilizar essa prática criminosa? A ação posterior da polícia, prendendo criminosos, como no caso Polyana, pouco resultado vai trazer para aquela família vitimada. Contudo, o que mais pesa nesse contexto é reconhecer nossa omissão e, muito mais, nossa participação ativa, quando “inocentemente” pactuamos e negociamos nas “roubautos” o sangue de nossos concidadãos e parentes.


Edson Costa Araújo – Coronel QOPM
Comandante Geral da PMGO